Acordei – há pouco
– entre um bico, na costela, e duas cusparadas, na cara. Comum recepção, nos
morros da favela; nesta manhã, já raiada. Se bem me recordo, a lua me beijava, enquanto
eu adormecia. E, para o ensaio de minha cegueira, dei um tapa na carreira, como
um irônico grito de “bom dia”. É um tanto lacônico; e parece bucólico, mas é a
vida que eu conhecia.
Não me
julgue, cidadão! Eu acordei há pouco, e ainda não recuperei a razão. Eu ainda
estou rouco; e me sinto meio louco, tamanha é a pressão. Estou sobre o efeito
de entorpecentes, e destes problemas decorrentes, desta ingrata vida de cão.
Tenho vinte
anos. Quase oito de tráfico e madrugada. Pouco mais de cinco entre muito vício
e pouca morada. Conheci criminosos internacionais; ditadores da droga e até
personalidades estatais. Já dormi na estrada; em rodovias federais; levei
chumbo da brigada, e acordei com a cara surrada por muitos que se titulavam
liberais. E também ouço, todos os dias, que sou um vagabundo – e que, do mundo,
eu só mereço a morte. Pouco sabem, estas mentes vazias, que nestas madrugadas
frias, eu só pude contar com a sorte.
Eu não
estudei em colégio bacana. Na verdade, nunca tive grana, pra investir em
educação. Mas agradecia – com tudo que podia – quando, na mesa, tinha arroz e
feijão. E, até hoje, nenhum irmão me repudia; e nem julga rebeldia, quando
roubei um pedaço de pão. Fiz como Valjean, naquelas páginas de maestria; em
seus literários tempos de revolução. Por isso, não me julgue, cidadão! Pois,
desta vida tardia, eu apenas segui a razão. É a vida que eu conhecia. Esta
maldita vida de cão.
E eu digo –
apesar de envergonhado – que eu só segui a inércia. Mas que vida é essa, se eu
só posso agüentar calado? Se eu sou um amargurado, que deixou a vida me
ensinar; e me obrigou a aturar, este perfil marginalizado? Quem sou eu, que de
todas as verdades – e das poucas oportunidades – jogou tudo para o lado?
Em suma; em
todas essas cicatrizes que a vida consuma, eu também não sei se vergonha é o
termo correto. Vendo que o mundo está repleto de tantos outros quanto eu. Que,
nestes colossos de concreto, nasceram – e só conheceram – os trajetos
distorcidos que a vida deu. E que nunca receberam – ao certo – algo além deste
deserto; este olhar, um tanto breu.
Por isso
cheiro desta inodora flagrância. Por isso, vendo esta substância. Pois sou um
viciado e um traficante. E este é o retrato de um filho derrotado e um
adolescente errante. Por isso, sequer dou importância, pois queria fazia
poesia. Abstrair, das palavras, estas maravilhas que o dia escama. Quem sabe,
até fugir da membrana, e escapar da agonia. Quem sabe, poderia ser pintor.
Fazer arte bela e fria, com louvor, muito amor e até posar para uma fotografia.
Pois poderia ser cantor.
Mas minha
vida foi vazia e eu não tive escolha. Tornar-me um traficante era a única chance
de fugir da bolha. Este é o destino que, a minha frente, cai. É a realidade
que, à mente, apresentou-me meu pai. E é o caminho que eu pregresso, sem chance
para interpretação. É o trabalho que exerço, deste ingrato dia de cão.
Pois está a é
a única vida que eu conheço. Então, não me julgue, cidadão.